Já que o mundo não é só feito de risos e brincadeiras, aqui está um conto para vocês que demanda um pouco de reflexão.
Eu o escrevi não tem muito tempo, era parte dos trabalhos da matéria de produção de textos, que eu curso em minha faculdade. A faculdade é de Letras-Literatura, na UNIRIO, muito boa por sinal, eu que sou ruim e estou começando.
Espero que gostem...
A Morte de Felipe ou Não Há Vida Sem Morte
Era meio dia em um Rio de Janeiro nublado, e já havia começado o funeral de Lia e sua mãe Ligia, as mesmas primeiras sílabas dos nomes e tragicamente ao mesmo tempo morreram. Alguns diriam ironia do destino, mas eu não vejo assim, na realidade, acho bonito.
A causa de suas mortes foi um acidente de carro, aquela chuva fina constante e a má iluminação da estrada. Voltavam do teatro com pressa, pois haviam deixado alguém esperando para o jantar, o pai da família, que não podia ir ao teatro devido às suas condições especiais de cadeirante. Pobre Genaro. Foi realmente triste ver alguém como ele, já debilitado, perder seus entes mais preciosos. Ele realmente amava muito sua família e sempre era reconhecido por ser uma pessoa muito afetiva e caridosa.
Creio que as pessoas que mais passam dificuldades possuem uma grande sensibilidade, e não é aquela história de se olhar no espelho simplesmente, pois nossos olhos podem nos enganar.
Apesar de Genaro parecer muito abalado durante toda a cerimônia, tratava a todos com muita serenidade. Foi até capaz de abrir um sorriso ao ver uma figura familiar chegar, alguém que há muito tempo não via. Era um primo próximo, mas que sempre esteve distante, um dos únicos parentes remanescentes da família de seu pai, seu primo Felipe.
Apesar da diferença de idade de mais de 10 anos sempre tiveram uma boa relação, Genaro sempre teve muito carinho com Felipe. Quando se encontravam no sítio de seu avô, Felipe estava sempre gargalhando com qualquer brincadeira que ele fizesse. Mas as coisas mudam. Desta vez Felipe se encontrava quase irreconhecível, Genaro não o via desde que ele perdeu seu pai.
Felipe antes na verdade se chamava Ravn, herança dinamarquesa de sua mãe. Nome que ele nunca gostou. Depois da morte de seu pai passou a assinar as cartas como Felipe, sempre dizia gostar de nomes de reis. Como já não escrevia com a mesma frequência de antes, Genaro, que não o esperava no funeral, foi surpreendido pela sua presença.
Apesar da ocasião não ser propícia para risos, Genaro, o via carregar, nem tristeza, nem remorso, mas uma forte seriedade em seu rosto. Era estranho como aquela pessoa parecia uma imagem estática, e que o vento a atravessava sem dificuldade. Mas pareceu relevar, afinal de contas poderia ser somente seu respeito pelos finados.
Ao fim da cerimônia Felipe se dirigiu a Genaro e expressou as condolências por sua parte e por parte de sua mãe, que não se encontrava em boa saúde para viajar para a capital. Felipe também informou que, a pedido de sua mãe, ficaria alguns dias na cidade para ajudá-lo. Afinal não restara ninguém para cuidar de Genaro.
Imediatamente Genaro insistiu para que Felipe se hospedasse em sua residência, lembrando que a casa era muito grande e sua companhia seria muito mais do que bem-vinda. Genaro realmente precisaria de sua ajuda, mais do que ele imaginava.
A viagem para a casa foi silenciosa, talvez devido ao curto trajeto e a quietude do primo, que era o oposto do que Genaro esperava, e que de certa forma o contagiava.
Enquanto Felipe o empurrava para entrar na casa, Genaro chama sua atenção.
- Sei que veio me ajudar, mas obviamente não me encontro completamente sozinho. Mesmo antes desta tragédia não seria possível viver sem a ajuda de Irene, nossa... Minha empregada. – Genaro limpa a garganta e desvia seu olhar.
Ao entrarem aparece uma senhora negra de mais ou menos 50 anos e se apresenta com um “boa tarde” bem tímido.
- Esta é Irene, ela vai te levar ao seu aposento, as escadas não serão tão difíceis para você, tenho certeza. Eu preciso descansar um pouco, mas nos reuniremos para o jantar. Sinta-se à vontade.
Para Felipe era impossível ficar à vontade, aquele lugar causava uma sensação muito estranha nele, como se não pertencesse ali.
Durante o jantar um silêncio muito mórbido afetava aqueles dois homens completamente solitários sentados à mesa de jantar, cada um em um canto, e aquela distância que os separava era muito maior do que é possível se ver. Genaro parecia um pouco perdido em seus pensamentos, enquanto Felipe parecia nem haver pensamentos em que se perder. Era como um grande boneco, com sua face voltada para o prato, tomando sua sopa vagarosamente, colherada por colherada. O silêncio se acaba quando Genaro, aparentemente incomodado, inicia um diálogo forçosamente.
- Me desculpe pelo silêncio primo, creio que não estou de muito bom humor, sua presença, no entanto me alegra. Conte-me como anda a vida na cidade pequena, você mal pronunciou uma palavra desde que chegou.
Felipe levanta a cabeça e olha em direção a Genaro, pensa durante um instante sem desviar os olhos.
- Não anda muito diferente do de sempre, a mercearia vende pouco, certamente a vida não é tão gloriosa como aqui.
- Não é disso que estou falando, estou dizendo de seus sonhos, de suas paixões. E se quer saber não há nada de glorioso aqui, o dinheiro é uma grande ilusão, tenho certeza que você vive muito bem com o pouco que tem, pois sua mãe sempre foi vaidosa e isso é uma coisa difícil de mudar. Mas diga-me, na sua idade você já deve ter alguma pretendente, não?
- Pretendente? Eu sempre trabalhei numa mercearia primo, eu te disse que não é como aqui.
- Mas a sua concepção de vida é completamente deturpada. Você acha que tudo gira em torno do dinheiro? Você acha que o dinheiro traz felicidade? Se fosse assim, porque ele não traz a minha família de volta?! – Genaro se exalta e de sua face começam a rolar lágrimas, tenta se conter limpando o rosto com as mãos e logo se retira para seu quarto. Felipe não fala nada.
Felipe sobe para o quarto, porém ainda era muito cedo para dormir. Sentado em sua cama, vaga os olhos inquietos pelo cômodo, e nota que há um espelho na porta do armário de roupa, ele anda até o espelho, para e se reflete.
Felipe quando era pequeno, moleque, notava-se todo dia de frente ao grande espelho oval do quarto de sua mãe. Ele via que estava crescendo, sempre tinha alguma coisa diferente em seu corpo, e ele fazia questão de procurar e notar. Às vezes fazia um arranhão de propósito só pra ficar diferente, e no dia seguinte estava de curativo, o garoto era muito criativo. É uma pena que tenha perdido esse costume.
Media-se através de pequenos cortes no canto interior da moldura, e sempre o fazia com muito cuidado para que sua mãe obviamente não percebesse. A mãe nunca viu nada, e nada além de sua própria imagem, uma pena, se ao menos tivesse notado, mas a vaidade não deixou, pois é a vaidade certamente é o pior tipo de suicídio.
O garoto nem tinha nada com aquilo. Anos de sofrimento e ostentação e a estrutura familiar completamente superficial levaram a uma incomunicabilidade entre os familiares, era um vazio muito grande que existia e todo o resto era sustentado por mentiras.
Aos 18 anos Felipe já trabalhava em um mercado, a situação financeira da família não ia nada bem, seu pai passara a beber, e o dinheiro era cada vez menor. Foi então que ironicamente ao ler uma carta de ordem de despejo, seu pai sofre um enfarte fulminante, aquela morte foi um baque para Felipe e sua mãe, mas os dois pareceram lidar muito bem com a situação.
A vida não é a mesma para todos, mas é preciso lembrar. Os dois conseguiram uma ajuda financeira de alguns parentes, que permitiu a eles abrirem uma vendinha e passaram a viver em uma casa menor, levando uma vida mais simples.
Felipe acorda num susto, era madrugada. Ele vai até a janela tomar um ar, olha para cima procurando a Lua, ela está no topo do céu parecendo um sol de meio dia, dividindo as nuvens ao seu redor. Ele olha agora a paisagem em baixo banhada de azul e repara numa luz fraca vindo da janela do quarto de Genaro. O que esse homem faz a essa hora? Lembra-se do jantar que há pouco havia tido, e um incômodo começa a tomar conta de si, era aquela casa, ela que lhe causava o incômodo, e ele precisava sair.
Porta, portão, sapato, asfalto, procura. Bar, copo, cigarro, fogo, esquece. Não quer sentir, só quer fugir.
Na manhã seguinte, ao voltar em casa, do lado de fora Felipe vê uma movimentação, havia um carro de polícia e outro carro desconhecido na porta, ao entrar no hall se depara com um homem bem vestido que se dirige a ele como Ubaldo, advogado de Genaro.
- Sinto muito ter que lhe dizer isso... Genaro cometeu suicídio na noite passada. Quando a empregada foi ao seu quarto encontrou seu corpo falecido na cama e um bilhete em sua mesa de cabeceira, o bilhete é destinado a você. – Felipe, ao escutar as palavras de Ubaldo, fica perplexo, mudo, como se seu mundo tivesse caído. – Não aconselho que entre lá, aqui tenho o bilhete, não foi lido ainda, não seria muito respeitoso, você quer? – Pergunta o advogado olhando para Felipe com um pouco de incerteza em sua pergunta.
Felipe sem falar uma palavra e sem tirar os olhos do chão se senta na poltrona do hall, e estende a mão para Ubaldo, que lhe entrega um envelope tirando do bolso interno do paletó e se retira a fim de deixá-lo mais à vontade. No envelope está escrito à mão as palavras “Para Felipe”. Ele abre e retira o bilhete para ler.
Escrevo-te um bilhete, primo, porque uma carta soaria muito formal, e quem precisa disto? Formalidade, moralidade? Só quero transmitir minhas últimas palavras, e creio que não haja melhor pessoa para compreender se não você.
Somos seres tão frágeis.
Sempre me pego pensando no passado, nas sensações e maneiras que eu tinha, é, parece idiotice, nostalgia, mas tem muitos pedaços que eu gostaria de reviver, sem dúvida, ao mesmo tempo em que sim, é tolice.
E como era mágico, sou capaz ainda de sentir o cheiro pela memória, eu fecho os olhos e me lembro da janela do meu quarto no verão, e cada inspiração minha era como um buraco negro sugando o perfume das folhas molhadas, das cores diversas brilhando no sol, do som dos pássaros, do gosto do vento, e a segurança de que nada poderia mudar a beleza daquele momento.
Aquele momento não mudou, está gravado em mim como um quadro vivo em minha mente, e cada vez mais eu me lembro. Toda vez que eu levanto, que atravesso o corredor, que apago a luz, que fecho meus olhos, até finalmente encontrá-las no meu sonho, só então fico em paz.
Não é nossa culpa que está tudo assim, tão sem vida, não há mais espaço para sonhar, tudo o que eu quero é respirar fundo e sonhar, sonhar é existir.
Do que adianta viver num mundo que já não tem mais cheiro.
Adeus Primo.
Ao terminar de ler o bilhete, Felipe deixa o bilhete na mesa e engole seco, como se estivesse engolindo cada palavra que havia lido. Levanta-se. O advogado nota a movimentação e aparece falando alguma coisa, mas ele não escuta e sai da casa.
Porta, portão, sapato, asfalto, foge. Carros, sol, ofegante, sem direção, aperta o passo.
Caminha até a praia com uma expressão de total desespero em seu rosto, mas seus olhos o entregam, estava claro que ele sabia o porquê de seu desespero. E caminha em direção ao mar.
Há algo curioso sobre o mar, que assim como outros elementos da natureza, ao entrarmos em contato, nossa percepção do que há em volta é mudada. Encontramo-nos sozinhos. O mar nos coloca diante de nossas capacidades e dificuldades. Coloca-nos contra nossa própria natureza, é inevitável.
Felipe não pode fugir desta vez, como um castelo de areia não se sustenta quando a onda vem de encontro. Porque você luta tanto Felipe? Você sabia que isso não poderia durar. Não desta maneira. Deixe-me, deixe-me ver no espelho o quanto eu mudei.
O que era de se esperar finalmente acontece. Felipe morre. Pois somente assim, eu, Ravn, posso voltar a viver.
Escrito por Frederico de Miranda Alt